Sem título

E ja não era mais época dela ter aquele tipo de recordação. Enquanto mudava os canais, como se procurasse alguma coisa para assistir, na verdade não queria era assistir nada. Era como se estivesse absorta dentro de seus pensamentos, mas também sem saber muito bem o que pensava. Aquela confusão mental nada mais era que, que... nem mesmo ela sabia dizer.

Desde novinha sempre soube o que queria. Já podia fechar os olhos e ouvir os badalos do sino da igreja tocando. Mas eram seus próprios olhos que fechava ou eram os olhos da família, dos amigos, do mundo convencional? Não importava que olhos eram, o que importava era que quando surgia o breu do tocar das pálpebras, havia um sonho. E se havia um sonho, havia uma certeza.

Relacionamentos não eram um problema, tampouco uma solução. Sempre levara seus amores de uma forma pacata, sensata e correta. Correta, é claro, dentro da concepção de correto que havia criado em sua cabeça.
Sendo sempre aquela pessoa coerente e racional, nunca pensou  que se apaixonaria dessa forma por um alguém tão diferente, ou tão igual a ela.

21hrs da noite, chegou no bar a que ia sempre com os seus amigos. Conversou com várias pessoas, mas não sabia que se apaixonaria por um certo alguém que se misturava no meio da multidão. Foi embora. Alguns dias depois já tinha uma relação de afeto  que foi crescendo cada dia, despercebidamente.
Era tão inusitada aquela paixão, que aquela forma pacata, sensata e correta de se relacionar transformou-se em palpitações, calores, saudades e angústia. As horas começaram a passar mais devagar e aquele sentimento crescia. Mas como era possível ter se apaixonado por alguém como aquela pessoa?

Nada mais disso importava. O porquê, o como, o quando... Para que cogitar no que haveria se transformado se nada daquilo tivesse acontecido? Ela era quem era, e não precisava de uma definição, de um rótulo. Ou, pelo menos, ela queria acreditar que não precisava.
Tentava medir o tempo que havia passado, o tempo que havia perdido. Tentava medir o medo que havia sentido e que sentia.

A decepção havia tomado conta de seu ser. Era, praticamente, a mágoa personificada. Ser traída era uma coisa que não pensava ser possível, não naquelas circunstâncias. Havia sido traída pelo seu amor, mas também havia traído todos os conceitos que guardava dentro de si, todas as certezas que havia tido algum dia.

Por aquele amor, o incorreto tornou-se correto, ruim tornou-se bom, minutos tornaram-se horas e as horas tornaram-se minutos, preto virou branco, “fique aqui comigo” tornou-se “vamos fugir juntos?”, “me liga amanha?” tornou-se “não saia de perto de mim”. Mas mais do que isso, “tenha mais amor próprio” tornou-se “eu te amo”, “a monogamia nao existe” tornou-se “eu te respeito” e “não me traia” tornou-se “eu te perdoo”.

Como seria isso possível? O mundo estava às avessas. Enquanto tentava segurar todas as verdades em suas mãos elas escorriam por entre os dedos.

E ja não era mais época dela ter aquele tipo de recordação. Enquanto mudava os canais, como se procurasse alguma coisa para assistir, na verdade não queria era assistir nada. É como se estivesse absorta dentro de seus pensamentos, mas também sem saber muito bem o que pensava. Aquela confusão mental nada mais era que, que...  a busca pela verdade.

Mas ela já era uma mulher experiente e sabia que a verdade já não mais existia. A fidelidade, o bom, o certo, eram criaçoes. E o ser era apenas estar. A única certeza que tinha naquele momento era o tempo, a transformação e a formação de novos conceitos. E quando fechou os olhos para dormir, não queria mais nada disso, queria apenas ser feliz.